Léxicos familiares
Li recentemente um texto de Vygotsky que me trouxe à lembrança um romance de Natalia Ginzburg. Essa newsletter é uma modesta tentativa de fazer os dois conversarem.
“Somos cinco irmãos. Vivemos em cidades diferentes, alguns de nós no exterior, e não nos escrevemos com frequência. […] Mas basta, entre nós, uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma daquelas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo da nossa infância. […] Uma daquelas frases ou palavras faria com que nos reconhecêssemos no escuro de uma gruta, entre milhões de pessoas. Aquelas frases são o nosso latim, o vocabulário dos nossos dias passados, são como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus textos, salvos da fúria das águas, da corrosão do tempo.”
(Trecho do romance “Léxico Familiar”, de Natalia Ginzburg)
Para Vygotsky, o significado de uma palavra possui dois componentes essenciais. O primeiro é o significado propriamente dito, que corresponde ao seu conteúdo estável, compartilhado pelos membros de uma mesma cultura ou comunidade de interesses, e passível de ser registrado no dicionário. O segundo é o sentido, o polo afetivo da palavra. De caráter mais provisório, o sentido toma forma a partir das vivências particulares do autor do discurso. Essa dupla dimensão da palavra foi explorada nas análises de Vygotsky sobre a relação entre cognição e afetividade. Para ele, o sentido seria algo como a história psicológica de uma palavra na nossa consciência.
Não sei se você leu a minha última newsletter, intitulada "Você sabe que é um lar?", mas o que eu escrevi ali pode servir de ilustração para essa diferença. Se digo "como é bom estar de volta ao lar", qualquer pessoa que entenda o português compreenderá que eu estou retornando a um lugar onde me sinto confortável, acolhida, conectada às minhas origens ou a uma fase pregressa da minha vida. Qualquer pessoa compreenderá que eu voltei para a minha casa ou para algum lugar que um dia eu chamei assim.
Porém, para pessoas que me conhecem, que se relacionam comigo, a mesma frase “como é bom estar de volta ao lar” pode soar ainda mais densa, mais penetrante. Alguém que conheça a minha história de vida será capaz de captar as notas afetivas que enriquecem o significado corriqueiro da palavra. Por que motivo eu chamo esse lugar, especificamente, de "lar"? Que memórias, que afetos, implícitos nessa frase, conferem a ela uma roupagem pessoal e intransferível? Essa apreensão não seria possível para um estranho.
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Nossa relação com as outras pessoas é sempre afetada, muitas vezes sem nos darmos conta, pelas diferenças de sentido que atribuímos às palavras. Isso pode ter consequências positivas, dando densidade e qualidade à relação, criando vínculos; ou negativas, afastando-nos dos outros, introduzindo ruídos, opacidades ou ambiguidades na conversa. Quantas vezes não nos sentimos solitários em meio a gente que fala a nossa língua materna, mas não fala a nossa “língua afetiva”?
O compartilhamento de sentido cria conexão. Por exemplo: quando há conexão verdadeira entre os membros de um casal, a comunicação é tão impregnada de sentido que muitas vezes basta meia palavra para que um compreenda os desejos ou intenções do outro. Isso é algo que salta aos olhos quando encontramos casais felizes. O fim de uma história amorosa começa quando os sentidos atribuídos às palavras passam a divergir de tal modo que não há mais matéria para a intimidade. Cuidar da relação consiste em esforçar-se para que a convergência de sentido se sobreponha à descontinuidade inevitável do cotidiano. E o mesmo ocorre com a amizade.
Cada família ou grupo de amigos engendra o seu próprio léxico. Assim como há também o léxico próprio de uma geração. É bom estar com pessoas com quem partilhamos sentidos porque isso nos consola, nos faz repousar - descontinuidade cansa. Agora pense em viver num mundo onde ninguém compartilha as suas referências, ninguém conheceu os seus ídolos de juventude, ninguém presenciou os mesmos momentos históricos que você. É o caso da minha saudosa avó, que partiu no mês passado, aos 102 anos. Elegante que era, ela soube se conformar sem alardes ou queixas com as mudanças culturais que testemunhou ao longo do seu século de vida. Se tinha perplexidades, guardava para si mesma, ocupando-se apenas em saber se os filhos, netos e bisnetos estavam bem e felizes. Porém, o fato é que em seus últimos tempos, quando as lembranças recentes foram dando lugar às do passado mais remoto, vovó passou a conversar apenas com os mortos.
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Eu tenho uma amiga muito querida, dos tempos de escola, que não conseguia falar "liquidificador" sem trocar alguma sílaba de lugar. Éramos um grupo muito coeso de meninas e volta e meia, no intervalo entre aulas, pedíamos a ela que pronunciasse a palavra só para nos divertirmos um pouco com a sua dificuldade. Minha amiga nos atendia e se divertia junto conosco. Nós ríamos, ríamos muito com aquela bobagem, daquele modo histriônico típico dos adolescentes quando estão em grupo. Hoje essa minha amiga é uma grande psicanalista, e eu não consigo dizer "liquidificador" sem pensar nela...
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Um abraço, e até a próxima,
Cristiane
Excelente, Cris. Eu já me sinto entrando nesse momento em que o real sentido de algumas palavras, termos, frases, só abrem com a chave do sentimento passado e da saudade. E pouquíssimos, ou mesmo ninguém tem mais esse chaveiro encantado.
Cris, amei o texto!