O tema da relação entre mães e filhas sempre me sensibilizou. Mas esta newsletter não é sobre mim, nem sobre a minha mãe (embora de certo modo não deixe de ser). Talvez num futuro próximo eu conte a nossa história. Hoje quero apenas compartilhar algumas reflexões inspiradas em outras duplas de mulheres.
Não vou desenvolver nenhum argumento em torno do vínculo entre mães e filhas. Serão apenas comentários a respeito dessa relação tão visceral, de cuja importância, tenho certeza, ninguém duvida.
Minha perspectiva é a da filha. E começo falando de Délia, personagem de Um Amor Incômodo, o primeiro romance de Elena Ferrante, publicado em 1992 com o título L’Amore Molesto. Em seguida, falo de Lúcia, que vem a ser minha avó materna.
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O tema da maternidade está presente em todos os romances de Elena Ferrante. Mas não seria exagero dizer que, em Um Amor Incômodo, o romance de estreia publicado em 1992, ele chega quase ao lugar de protagonista. Um protagonismo marcado pela ausência.
A história é narrada por Délia, uma mulher de 46 anos que não se casou e não teve filhos. Após a infância marcada por conflitos familiares e pela relação distante com a mãe, Délia passa a vida adulta tentando se desapegar.
A mãe de Délia era uma costureira habilidosa. Prestava serviços para mulheres ricas e elegantes. Mas era habituada, ela própria, a usar roupas simples, que não realçavam a sua beleza. Talvez isso se devesse à falta de dinheiro, ou talvez ao fato de possuir um magnetismo pessoal que já lhe garantisse os olhares e atenções dos homens por onde quer que passasse. A verdade, contudo, é que a costureira não era somente olhada. Quando não se via cerceada pela companhia possessiva do marido, ela também olhava para todos os lados. E foi à sombra dessa mãe que Délia cresceu, meio esquecida pelos cantos de sua infância solitária. Foi por causa dela que Délia desenvolveu um sentimento de hostilidade pelo pai, de cuja agressividade foi testemunha. E por tudo isso, assim que pôde, afastou-se da família e foi morar sozinha em outra cidade.
Quando a mãe a visitava, o sentimento de Délia era ambíguo. Sua presença sempre lhe provocava uma espécie de incômodo. Afligia-se com seus atrasos, e se aborrecia quando ela permanecia tempo demais. Um dia, mais precisamente no dia do seu aniversário, Délia recebe a notícia de que a costureira se afogara voluntariamente no mar, usando apenas um soutien de griffe. Inicia então uma investigação frenética para tentar descobrir o que aconteceu, e os fatos do passado começam a se apresentar sob uma nova luz. A morte da mãe - que, significativamente, é o evento de abertura do romance - coloca a distância necessária para que Délia consiga fazer um movimento corajoso: olhar para a sua infância angustiada, nomear o que precisava ser nomeado e, finalmente, reconstruir a trama da relação agora na perspectiva de mulher adulta.
Délia foi uma criança largada, sem limites claros, sem acesso à verdade. E foi somente com a morte da mãe que conseguiu juntar os cacos de sua identidade. A história de Délia é dolorosa, assim como são sempre dolorosos os conflitos entre mães e filhos, principalmente aqueles que deitam raízes na infância e atingem o cerne da relação de apego.
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“A morte da mãe é uma tragédia para a família.” Essa frase eu ouvi de minha avó materna, que perdeu a sua própria mãe antes de fazer sete anos. Vovó sabia bem do que estava falando.
Eram seis filhos, três meninos e três meninas. Moravam em um sobrado, onde funcionava também o armazém do pai. Na parte de cima da casa, a jovem mãe reinava diligente e atenciosa, até ser colhida pela morte durante um aborto espontâneo aos vinte e sete anos.
Lúcia foi mandada para um colégio de freiras em Barbacena, junto com a irmã mais velha. O pai ficou com os dois filhos e entregou a caçulinha para ser criada pela sogra. Os laços da família não se desfizeram, mas deixaram de contar com o cimento possante da convivência cotidiana. Lucia e a irmã só viam o pai e os irmãos nas férias, quando vinham de Minas para passar algum tempo no Rio de Janeiro.
No colégio, teve uma educação esmerada. Aprendeu francês, artesanato, poesia, praticou esportes. Só saiu do internato aos dezessete anos, direto para o altar. Afastou pretendentes abastados para se tornar matriarca da densa família que construiu com o meu avô, homem simples e trabalhador, filho de libaneses. Quando faleceu, aos 102 anos, ela contava seis filhos, mais de vinte netos, dezenas de bisnetos. Em seu caderno íntimo, anotou o nascimento de cada descendente como quem registra uma conquista. Embora tenha sido apartada do seio familiar tão cedo, ela soube unir a prole com uma força serena e discreta.
A única fragilidade que conheci de vovó foi o medo de trovão, que lhe acompanhou por toda a vida. Ela contava que, quando menina, as noites de tempestade em Barbacena eram um verdadeiro tormento. Naquelas ocasiões, deitava-se na cama da irmã e ali permanecia quietinha, para que as freiras não percebessem a manobra. Era o momento em que as duas sofriam juntas a angústia da ausência materna.
Vovó enterrou o marido, dois filhos, três genros e três netos, e no seu sofrimento não havia espaço para vitimismo e autocomiseração. Durante muitos anos, até bem recentemente, ela nos surpreendeu com a sua saúde física e a sua lucidez. Até que o corpo começou a cansar e a mente foi habitar outras paragens. Ao que parece, nessas paragens também habitava a sua mãe.
A cada dia, vovó foi se distanciando mais do nosso mundo. Seu físico forte e robusto encolheu, e ela retornou a um estado de dependência absoluta. Nas últimas semanas, chamava pela mãezinha muitas vezes por dia, como quem anseia por um pouco de água fresca. Era algo que dava dó de ver.
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Independentemente da qualidade do apego, a mãe é sempre modelo. A relação entre mãe e filha é um jogo complexo de identificação e diferenciação, de repercussões profundas. A história de Délia é um exemplo de como esse jogo pode levar à dispersão da identidade:
“Eu não quis ou não consegui enraizar ninguém em mim”, escreve Elena Ferrante, dando voz à sua protagonista, “mais algum tempo e perderei até a possibilidade de ter filhos. Nenhum ser humano jamais se desligaria de mim com a mesma angústia com que me desliguei da minha mãe apenas porque não consegui me apegar a ela definitivamente. Não haveria nenhum mais ou nenhum menos entre mim e outro ser humano feito de mim. Eu permaneceria sendo eu até o final, infeliz, insatisfeita com aquilo que arrastara furtivamente do corpo de Amália.”
A história de Lúcia, por sua vez, é intrigante. Não posso deixar de me perguntar que lembranças, narrativas, informações, permitiram que ela construísse a imagem materna que lhe serviu de inspiração ao longo da extensa caminhada. Se foi uma boa mãe, só os filhos e filhas podem dizer. Se foi feliz, só ela poderia responder. Mas a mim, neta admirada de como vovó conseguia ser tão altiva sem jamais recorrer a artificialismos ou afetações, sempre me pareceu que ela tinha posse de uma identidade íntegra, com contornos nítidos. Uma identidade que se atualizava plenamente no domínio do lar, e cujos reflexos foram absorvidos por três gerações de homens e mulheres.
Os desfechos diversos de nossas duas personagens não devem, contudo, nos iludir. A não presença da mãe deixa uma marca indelével na alma. Algo como um desespero. Embora a história de Lucia seja muito diferente da história de Délia, o ponto que mais me comove é justamente aquele em que elas se cruzam. Em ambas as trajetórias, há uma filha, diante da morte, tentando se reconectar.
Um abraço,
Cristiane
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Imagem do post: cena do filme L´Amore Molesto, de Mario Martone, inspirado no romance de Elena Ferrante. Délia em busca do passado.
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