Um dia, arrumando as estantes de livros, encontrei uma edição antiguinha de Menino de Engenho. Não me recordava de ter lido, mas sabia alguma coisa sobre a obra de José Lins do Rego. Menino de Engenho é o primeiro volume de uma trilogia que narra a trajetória do personagem Carlos Melo, e trata dos anos de sua infância. O segundo volume, intitulado Doidinho, é sobre a adolescência num internato de disciplina severa. E o terceiro, Banguê, de sua volta, já bacharel em Direito, ao saudoso e decadente engenho de cana-de-açúcar do avô.
Eu havia decidido que só ofereceria a meus filhos literatura de qualidade, e andava muito envolvida com a elaboração de uma lista de obras infanto-juvenis. Logo que vi o livro, pouco mais de cem páginas, tive a ideia de apresentá-lo ao mais velho, que na época estava com dez anos. Hoje penso que Menino de Engenho não era ainda apropriado, mas esse é precisamente o meu assunto aqui, e não quero me adiantar.
O fato é que segui o primeiro impulso – José Lins do Rego, que beleza! – e entreguei o volume ao Tomás. Combinamos que começaríamos a ler juntos, à noite. Às nove horas, depois que o bebê dormiu e a casa se aquietou, fui buscá-lo para iniciarmos a leitura. Ele participava de uma brincadeira online com os amigos, o que me exigiu certa dose de persuasão. Mas não foi muito difícil. Ótimo menino, honrou a combinação que tínhamos feito e me acompanhou à sala.
Sentamos no sofá juntinhos. Expliquei que José Lins do Rego era considerado um dos maiores escritores brasileiros, e Menino de Engenho um clássico incontornável. Fiz tudo como manda o figurino: abri o livro, li o título, o nome do autor e a data de publicação. E foi então que a primeira frase soou como um estrondo: “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu”.
Eu não tinha ideia de que o livro começava desse jeito, não havia me dado ao trabalho nem mesmo de uma leitura em diagonal. Aí vem chumbo, pensei. Olhei de soslaio e me deparei com uma expressão estarrecida, de quem acaba de se descobrir traído: “Mãe, que livro é esse!!!? Você quer que eu passe a noite sem dormir?”
Como a grande maioria dos filhos, nessa época Tomás estremecia de pavor diante da ideia de que um dia eu poderia vir a morrer. Percebi que tinha dado uma mancada, mas logo me recompus e desfiei o argumento: “Filho, a vida é assim, as pessoas morrem. Você sempre teve medo de que eu morresse, não é? Pois então, agora você tem a oportunidade de saber o que acontece com um menino quando ele perde a mãe. Você vai conhecer a experiência sem de fato sofrê-la. E isso tendo a sua mãe bem pertinho. Olha que coisa boa.”.
Ele aquiesceu, com uma expressão resignada, e continuamos a ler. Logo em seguida, mais uma bomba: a mãe não tinha apenas morrido, tinha sido assassinada, pelo próprio marido, o pai do menino. Mais protestos, dessa vez não cedi. Prossegui com a leitura, embora alternando juízos mentais sobre a conveniência ou não de continuar com aquilo. Comecei a me preocupar seriamente com o que poderia vir depois, mas consegui manter a fleuma, operando ao mesmo tempo em dois registros: um só meu, dominado pela preocupação; outro que eu compartilhava com ele, tudo sob controle.
Na medida em que a história se desenrolava, o livro começou a atrair a atenção do meu filho. Órfão de mãe e com o pai internado em um presídio, o menino, que antes habitava a cidade, foi morar no engenho de cana-de-açúcar do avô, onde viveu experiências de criança de elite criada na roça, tudo muito distante do nosso universo de classe média urbana.
Ele foi ficando interessado. Não sei se por excesso ou falta de coragem, deixei que continuasse a leitura sozinho, nos dias que se seguiram. Afinal de contas, fosse como fosse a história, era José Lins do Rego. A certa altura, porém, Tomás me procurou pela casa muito irritado: “Mãe, todo mundo morre nesse livro? A prima de quatro anos também morreu! Esse livro é muito ruim!” Sentei novamente com ele e retomei a ladainha: “Filho, em primeiro lugar, o que define um livro como bom ou ruim não é o teor alegre ou triste das coisas que acontecem na história, e sim a qualidade do texto, e a capacidade do autor de perceber e expressar aspectos da vida e do mundo que nós não conseguiríamos nem vislumbrar. O autor desse livro está compartilhando conosco todo um conhecimento a respeito de uma época e de um modo de vida muito diferentes do nosso. Há algumas décadas, as crianças morriam muito mais do que hoje. Hoje a morte de uma criança rica é um fato quase inconcebível, naquela época não era assim. Fique feliz por viver num mundo em que existem antibióticos, etc etc etc.”
Ele aquiesceu, mais uma vez. Sempre teve muita facilidade para absorver nossas impressões sobre a vida e incorporá-las às suas. Continuou lendo. Depois da morte da priminha, estava preparado para qualquer coisa. Mas, de vez em quando, estranhava o naturalismo da narrativa, como no dia em que telefonou para o meu trabalho no meio da tarde para contar, horrorizado, que os meninos do engenho faziam sexo com as vacas e as cabras no curral da fazenda… Ao ouvir o seu relato, cogitei perguntar se o protagonista também fazia isso. Mas achei melhor não, preferi não saber.
O fato é que agora o protesto já não tinha mais aquele tom agoniado. Alguma coisa havia amadurecido dentro do meu filho. Ele arrematou a narrativa da zoofilia com algo do tipo: “que coisa horrível, mãe…“ E eu, por minha vez, lhe respondi “sim, querido, é abominável”. Mas a vida segue. Sem drama e sem histeria. Seja forte, meu filho. Assim como as mães podem morrer, e maridos descontrolados podem fazer mal a suas esposas, tem gente que faz sexo com animais. Infelizmente, nem tudo é bom e belo nos quintais da vida. Não há casa grande ou senzala imune à corrupção e ao vício. A virtude é fruto de uma busca constante pelo Bem, ela não nos é oferecida como um item pret à porter.
Eu não disse essas coisas para ele. Disse para mim mesma. Mas penso, sinceramente, que foi isso o que o menino inteligente e bom caráter aprendeu com a leitura de Menino de Engenho. Eu não indicaria o livro para crianças dessa idade. Mas para o meu filho, valeu. Um dia ele teria que saber que, em muitos rincões do mundo, meninos perdidos fazem sexo com animais. Dificilmente o saberia por mim ou pelo pai. Antes pelo Zé Lins do que por algum aventureiro…
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Um abraço!
Vou segurar mais um pouco este livro aqui em casa, pois o meu menino tem 12 anos e acho que ainda não é o momento para ele. Espero ter a coragem de achar que chegou a hora antes que a internet o tenha apresentado a zoofilia. Como você, também prefiro delegar esta tarefa a José Lins do Rego!
Cristiane, quando você irá escrever o seu primeiro livro? Já estou na lista de espera 😉